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A filha preferida

 

 

 

 

 

 

 

Por Ana Luiza Souza

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Em alguns casos de desencontros os reencontros nunca chegam a acontecer. Segundo dados do Centro de Referência Especializado de Assistência Social – CREAS de Fortaleza, entre 2006 e 2016, 196 pessoas continuavam desaparecidas, mesmo após dez anos. Casos em que o familiar não é encontrado, como na história de Vicença Soares dos Santos, 72, irmã de Francisco Pereira Soares, desaparecido desde 2009, ou outros casos ainda são os mais comuns. Entretanto, há casos como o de Giselia Gomes, 41 anos, estudante de psicologia, que reencontrou a irmã após 10 anos de busca. Ainda assim, nem todo reencontro é fácil.

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No quintal de uma casa simples, no bairro Cambeba, em Fortaleza, a estudante de psicologia começa a contar sua história. Mal começa a falar e caí no choro. Pede desculpa, respira e recomeça. Ainda com o olhar marejado Giselia fala sobre o reencontro da irmã, Jucélia Gomes, 42. Elas foram separadas na infância e, apesar, de ver a felicidade da mãe com o retorno da menina, Giselia não soube lidar com os sentimentos. Até hoje se arrepende de não ter recebido-a melhor. “Eu acho que talvez seja por isso que eu choro, sabe? Porque eu era a preferida da casa e quando ela chegou [choro] eu não consegui aceitar ela. Engraçado, eu nunca falei isso para ela [choro], mas foi isso”, desabafa Giselia.

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Giselia tinha nove anos quando tudo mudou, o ano era 1986. Seu pai falecera e a mãe, Dona Chiquita, como era conhecida, sem condições de cuidar de cinco filhos, soube através de uma amiga de uma família que estava a procura de uma menina para brincar com a filha deles. Acreditando na amiga, Chiquita levou Jucélia para brincar com a criança, voltava para buscar assim que possível. Giselia também foi levada para outra casa. E assim Chiquita fez com os filhos, distribuiu entre conhecidos e parentes, mas não para desfazer-se das crias, e, sim para poder se reorganizar e sustentá-los após a morte do esposo.

 

Passados 30 dias, depois de receber notícias de Jucélia aqui e acolá através da amiga, Chiquita procurou a família que ficou com a menina. Chegando ao endereço, na cidade de Juazeiro, onde ela morava com os filhos, deparou-se com uma surpresa: a família havia se mudado e ninguém, nem mesmo a amiga, sabia do paradeiro da menina. Giselia se emociona ao contar:

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Naquela época a família simples, do interior e sem acesso às informações, não procurou as autoridades, nem recebeu o apoio de ninguém. Dona Chiquita, porém, não cessava a busca pela filha. Segundo Giselia, a mãe vivia aflita, preocupada com Jucélia, e os outros filhos, apesar da pouca idade, sofriam, pois viam a mãe numa lamentação sem fim. “A vida da minha mãe foi só tormento, foi só sofrimento mesmo. Ela não tinha um dia que não falava dela, e não tinha um dia que ela não chorava. Acho que ela se sentia muito culpada de ter deixado ela ir para essa casa, mas ela não tinha noção de que isso ia acontecer. Ela achava que tava fazendo o bem para ela”, conta Giselia.

 

Giselia e os irmãos foram crescendo, brincavam, corriam, não tinham muito tempo para lembrar da irmã desaparecida, mas sempre na hora do jantar eles sentiam que algo faltava:

 

 

 

 

 

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Apesar da tristeza, Dona Chiquita continuava trabalhando para sustentar

os quatro filhos e achar a quinta perdida. A mãe de Giselia

começou a juntar dinheiro para pagar um advogado,

a promessa era que o homem encontraria Jucélia.

E assim aconteceu, depois de oito anos, alguém sabia

do paradeiro da menina. Esse paradeiro cabia

num pedaço de papel, era um endereço.

Rua, número, cidade e estado: Goiás.

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Sem mais dinheiro para pagar que o advogado fosse

buscar Jucélia, Chiquita resolveu ir só. Giselia conta que mais

uma vez ela e os irmãos foram deixados sob a responsabilidades de

parentes enquanto a mãe viajava. O primeiro destino foi Brasília, de onde a progenitora juntou dinheiro para partir para Goiás. “Ela foi, sem saber se era o endereço certo. Quando ela chegou na rodoviária, começou  pedir ajuda pro pessoal, para saber onde era a casa, e ela encontrou a casa, depois de 8 anos”, relata a estudante de psicologia.

 

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Ao chegar ao endereço, uma casa “grande, bonita” a mãe de Júcelia descobriu que durante a infância a menina sofreu. Apanhava para aprender as tarefas domésticas e cuidava da criança. A mesma criança que ela tinha sido levada para brincar com há anos. Na época que a mãe chegou até ela, Jucélia, então com 18 anos, tinha uma vida normal, tinha estudado em uma escola pública e estava namorava um rapaz da cidade.

 

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A família mostrou-se surpresa com a chegada da mãe da moça. Entretanto, apesar de terem condições financeiras, segundo Giselia, não mostraram interesse em ajudar as mulheres a retornar ao Ceará. Determinada a tirar a filha daquela situação, Dona Chiquita decidiu partir imediatamente. Giselia relata que a irmã deixou a casa só com uma sacola e a roupa do corpo. Jucélia e a mãe decidiram então trabalhar para conseguir o dinheiro para as passagens de volta a Juazeiro. Depois de contar sua história, as duas foram acolhidas e trabalharam por meses em um hotel da cidade até voltar ao Ceará.

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A noite do reencontro

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“Eu lembro que elas chegaram a noite, a gente tava deitado. Todo mundo levantou para receber elas. Na dormida, quando a mãe chegou no quarto e tava todo mundo na sua rede, os cinco, ali caiu a ficha dela, ela disse “obrigada meu Deus, meus filhos tão tudo junto agora”, narra Giselia ao falar da noite em que reencontrou sua irmã após oito anos. Apesar de saber quão importante aquele momento era para a família, Giselia conta que o que veio depois do reencontro daquela noite não foi um conto de fadas.

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Acostumada a ser o centro das atenções no período em que a irmã estava sumida, Giselia conta que naquele momento o egoísmo falou mais alto e ela passou a sentir ciúmes da irmã. Poucos dias depois, Giselia e Jucélia brigaram. Percebendo a situação, a mãe das garotas, uma com 18 e a outra com 17, teve que intervir. A irmã recém-chegada foi então levada à casa de uma tia, para que o atrito entre as duas cessasse.

 

Giselia reconhece que sua reação na época não foi a mais correta. Segundo a estudante de psicologia, a atitude dela estava relacionada também ao ciúmes da mãe. Até agora ela não entende como pode ter agido como agiu, pois aquele devia ser um momento de acolhimento e por isso evita contar a história do reencontro com a irmã. “Eu fui  muito egoísta, sabe. Acho que é por isso que eu não gosto de falar nessa história. Como que minha irmã some oito anos e quando ela chega…[pausa]. Quando ela chega ao invés de abraçar ela [outra pausa]… É triste”, admite.

 

Para Giselia, o sentimento que ficou marcado daquele tempo foi o de arrependimento:  

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Hoje, 24 anos depois de terem se reencontrado, as irmãs convivem bem. Giselia, sempre bem humorada, se diverte ao contar que até mesmo os maridos elas dividem. Ela explica: em uma certa ocasião em que Jucélia foi visita-lá percebeu que a irmã estava engatando um romance com alguém. Pouco tempo após essa visita, Giselia descobriu que o romance era entre Jucélia e o ex-marido. “Ela foi morar com ele e teve um filho com ele, mas também não tá mais com ele [risos].” Atualmente, as duas não se encontram muito, mas Giselia atribuí a falta de contato à rotina pesada de estudante e mãe e a distância entre Fortaleza e Nova Russas, onde Jucélia mora. “Mas agora nas férias ela vem [para Fortaleza]”, explica Giselia com um sorriso.

 

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Giselia Gomes - irmã da desaparecida
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Giselia Gomes - irmã da desaparecida
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Giselia Gomes - irmã da desaparecida
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