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O pai da noiva 

Daniele Freitas

Por Alexia Vieira

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“Olhe, minha filha. Não faça igual a sua mãe e eu, casar e separar”. Este foi o conselho que Daniele Freitas escutou de seu pai, Jorge Cardoso, um dia antes de seu casamento. A empregada doméstica foi visitá-lo na casa da avó, mãe de Jorge, como um rito de passagem, já que nenhum dos dois iria ao cartório acompanhar a cerimônia. Daniele não imaginava que o pai sumiria no dia seguinte, 12 de abril de 2011, pouco depois de sair de casa avisando que tinha decidido prestigiar o casamento da filha, perfumado e vestido com sua melhor roupa. A angústia da perda durou seis anos.

 

Relatos como este não são incomuns no Brasil. Em 2017, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgou dados mostrando que, nos últimos 10 anos, pelo menos 693.076 pessoas desapareceram no país. O estudo é pioneiro nesse assunto e foi requisitado pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha. O número pode ser ainda maior, já que a pesquisa leva em conta somente a quantidade de boletins de ocorrência das delegacias. Alguns estados, como o Ceará, não entregaram os dados. Além disso, famílias nem sempre registram o desaparecimento do ente querido, como é o caso de Daniele.

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Desde a separação da mulher, Jorge Cardoso mantinha como hábito sair de casa por tempo indeterminado, muitas vezes abusando do uso do álcool. Daniele conta que a mãe “não aguentava mais” a vida que levava com o pai e decidiu acabar o casamento. Por não ter condições de criar os filhos, a decisão da mãe foi entregar o irmão de Dani para uma vizinha cuidar. A empregada doméstica, que na época tinha somente oito anos, passou a viver com a avó paterna. Aos 12 anos, Daniele via o pai desaparecer, voltar e sumir novamente - movimento que dura até hoje.

 

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Jorge costumava ficar perambulando pelas ruas da Capital, longe da família por períodos que chegavam a durar dois anos. As fontes de notícia sobre o paradeiro do pai eram pessoas que o avistavam dormindo ou comendo na vizinhança. O homem, que ganhou o apelido de “Capitão” de outras pessoas em situação de rua, não estava presente para ver a filha crescer. “Apesar dele não ter assumido o trabalho de pai, eu amo muito ele. Foi só depois que percebi a importância dele na minha vida”, reconhece Dani. A filha de Jorge nunca entendeu o porquê do pai não gostar de conviver com a família, fato que culminou em seu longo sumiço de seis anos.

 

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Devido o uso de drogas, incluindo o álcool, ser marginalizado

pela sociedade, o psiquiatra Rafael Baquit explica que muitas

pessoas se sentem envergonhadas de estar na posição social

de “drogados”. O profissional que trabalha no Centro de

Atendimento Psicossocial (Caps) afirma que os motivos de uma

pessoa preferir morar na rua são muitos, como desavenças familiares,

traumas, problemas mentais e a fuga do preconceito que sofre da

sociedade por ter um vício. Para ele, não é possível dar um único

motivo a vontade de Jorge de estar longe da casa da família, pois

“tudo em saúde precisa ser visto com olhar multifatorial”.

 

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O comportamento de Jorge foi um fator para que a preocupação de Dani com a falta do pai só fosse sentida depois de três anos, quando o sumiço era maior do que todos os outros já sucedidos. Sem notícias do Capitão nem dos amigos da rua, a empregada doméstica começou a ter medo de visitar a vizinhança onde ele costumava ficar e receber notícias ruins. “Eu falava com minha mãe: será se ele num morreu, num tá preso?”, ponderava. Foi a dúvida de que a perda, até então comum, fosse verdadeiramente perpétua que trouxe a maior angústia para Daniele.

 

Durante os últimos três anos do desaparecimento do pai, Dani buscou ajuda na religião para lidar com a forma que aquilo afetou a sua personalidade. Além da infância bruta, guiada pela educação rígida da avó e dos abusos sofridos pelo padrasto, a perda do pai foi mais um trauma psicológico para a mulher. Apesar disso, em nenhum momento Daniele pensou em buscar apoio do Estado, nem para procurar seu pai ou para buscar atendimento com um terapeuta, pois, segundo ela, sabia que “não ia adiantar”.

 

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Para Olaya Hanashiro, consultora sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o desaparecimento de uma pessoa deve ser encarado com seriedade pelo estado. Os tipos de desaparecidos são diversos e não são documentados pelo Governo. Crianças, idosos, pessoas com transtornos mentais, que abusam de drogas ou jovens de qualquer idade podem vir a sumir pelos mais complexos motivos, desde crimes até a vontade própria. Em nenhum dos casos, para a pesquisadora, o fenômeno deve ser ignorado.

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“O objetivo da nossa pesquisa é levantar dados, porque não há uma sistematização sobre os tipos de desaparecimento no Brasil. Sem entender o contexto em que se dá este acontecimento, fica mais difícil criar qualquer tipo de política pública para dar uma resposta ao fenômeno”, explica Olaya. De acordo com as classificações utilizadas na pesquisa do Fórum, o caso de Jorge foi um desaparecimento voluntário, não configurando crime ou sendo responsabilidade do estado. Entretanto, para Hanashiro, o apoio do estado deve estar presente mesmo assim.

 

O desaparecimento não afeta somente quem some, que pode ter sido vítima de um homicídio por exemplo, mas a família e a comunidade que fica.  “É um sofrimento terrível, tem consequência sérias do ponto de vista emocional”, diz a consultora. Ela atenta ainda para questões burocráticas que muitas vezes a família precisa lidar, mesmo em meio a dor da perda, como a ida até delegacias registrar o Boletim de Ocorrência do desaparecimento e não ser atendida de forma correta. O processo de busca sem o amparo das políticas necessárias acaba sendo ainda mais doloroso. Saiba mais sobre a procura dos desaparecidos clicando aqui.

 

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O depois

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O acaso foi o que uniu Daniele e Jorge novamente. Durante a marcha de sete de setembro de 2017, que comemora a Independência do Brasil, a empregada doméstica viu um homem ao longe com todas as características de seu pai. “Quando eu fui me aproximando e vi que era ele comecei a gritar ‘pai, pai, pai!’, foi aí que ele me viu, acho que nem me reconheceu por estar tão bêbado”, conta. Depois do abraço gravado em vídeo por todos que assistiram ao reencontro na avenida Beira Mar, Daniele tentou trazer o pai para casa, mas ele não aceitou. Jorge vive até hoje em uma casa de recuperação no município de Itaitinga, região metropolitana de Fortaleza. Ele visita a filha mensalmente sem ir em sua residência, prefere continuar dormindo em um estacionamento.

 

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“Eu sempre falo para as minhas filhas, vocês tem que dar valor a mim enquanto eu tô aqui”, relata Daniele, relembrando de seu passado sem pai ou mãe tão presentes quanto gostaria. Depois de todo o sofrimento sem saber onde Jorge estava, ela explica que refletiu sobre o relacionamento dela com as próprias filhas. A personalidade fechada que seguiu Dani por toda a vida, segundo ela, foi reflexo das coisas que viveu na infância. Sem ver proteção na mãe e nem apoio no pai sumido, ela diz que a única coisa que a impediu de sumir foi sua fé. “Minha avó fala que eu não sei dar amor pros meus filhos e eu digo: como é que vou dar uma coisa que nunca tive?”.

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Daniele Freitas

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